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sábado, 28 de maio de 2011

Liberdade

Capítulo 1

Um conversível velho e amassado atravessava a rodovia SP-129 com toda a velocidade, ou, ao menos, com a maior velocidade que aquela lata velha podia alcançar.
            - Não acredito que estou fazendo isso, Júlia. Sua mãe vai me matar! – disse Rita, a dona daquele modesto automóvel. Estava visivelmente preocupada com a sobrinha. A garota, por sua vez, riu e disse apenas:
            - Ela não vai saber disso, tia. Relaxa. Ou melhor, acelera!
            Júlia não conseguia se lembrar de um dia ter tido uma sensação tão incrível quanto aquela. Isso era porque sua vida, normalmente, não era das mais interessantes.
            Francamente falando, a vida de Júlia não era nenhum pouco interessante. Ela sabia disso e estava obstinada a fazer o que fosse possível para combater aquele tédio que assolava sua vida durante todos os seus dezesseis anos de existência.
            Na vida de Júlia duas coisas eram constantemente ausentes: liberdade e diversão. Isso não é um exagero, levando em conta a rotina dela. Nascida na capital de São Paulo e estudando em uma das melhores escolas particulares da cidade, a garota passava a maior parte de seus dias trancada no apartamento com a mãe. Sair, apenas para ir à escola ou para consultas médicas. 
            Superprotetora e enérgica. Assim era a mãe de Júlia, Lorena. Ao perder o marido, quando Júlia ainda era um bebê, Lorena tornou-se quase paranóica pela segurança da filha. Afinal, seu marido já estava morto, e ela tinha pavor que o mesmo acontecesse a Júlia.
            No entanto, na tentativa de proteger a filha, Lorena privou Júlia de todo o tipo de diversão. Vigiava a garota o tempo todo, especialmente durante a noite e a madrugada. Tinha seus motivos para fazer isso. Assim, Júlia era terminantemente proibida de sair sozinha. Nunca havia ido a um passeio ou a uma viagem da escola, nunca havia passado a noite na casa de amigas, e nem mesmo de parentes.
            A mãe era tão obcecada por segurança quanto Júlia era obcecada por liberdade. Então, Júlia armou um plano para, pela primeira vez na vida, se livrar da companhia onipresente da mãe e realizar o seu maior sonho: ir para o famoso Acampamento de Esportes Radicais, na cidade interiorana de Boituva.
            Ir para um acampamento de esportes radicais poderia parecer impossível, considerando a situação de Júlia, mas ela arquitetara tudo cuidadosamente, desde que soube que, pela primeira vez, Lorena iria viajar a trabalho durante pouco mais de uma semana. Coincidentemente, era a mesma semana em que iria acontecer o acampamento.
            Lorena, relutante em deixar a filha, quase desistiu de viajar. Mas não tinha muita escolha. Era estritamente necessário, e ela concordou em ir desde que Júlia ficasse sob os cuidados de sua tia, Rita.
            Quando soube que iria ter que passar mais de uma semana com a tia Rita, Júlia ficou louca de alegria. Aquela era a chance que ela sempre esperara. Usou o dinheiro que guardava há algum tempo para uma “emergência”, e se inscreveu no acampamento via internet. Essa fora a parte fácil.
            - Lembre-se... De casa para a escola, da escola para a casa. Nada de deixá-la fazer o que ela quiser, essa menina não tem juízo. – Lorena advertiu Rita.
            - Mãe, eu estou de férias. Não vou pra escola. – Júlia interviu, mas a mãe continuou a falar:
            - Não a deixe esquecer de tomar os remédios na hora certa, pelo amor de Deus. Ah, e a Júlia não pode ingerir cafeína, corantes alimentícios, nada de bebidas alcoólicas, e muito menos medicamentos sedativos, anti-alérgicos ou anti-histamínicos. Sedativos são extremamente perigosos para casos como o dela e... – Lorena tagarelava, fazendo mil recomendações à sua irmã mais nova.
- Eu não vou dar nenhum sedativo pra Júlia, Lorena. – Rita respondeu, horrorizada e tonta com tantas informações.
- Mãe, assim você deixa a tia Rita louca.  Eu sei o que posso ou não posso fazer. Você sabe que sou extremamente responsável. – Júlia argumentou, fazendo o possível para que Lorena fosse logo embora.
- Está bem. Vou fingir que acredito.    
            - Então... Está tudo ótimo, tudo certinho... É hora de você ir, mamãe. Você não que perder o vôo, quer? – Júlia abriu a porta e deu um de seus sorrisos angelicais mais autênticos.
            Antes de sair, Lorena ainda abraçou a filha e disse, repetidamente, que qualquer coisa que acontecesse, era só ligar e ela voltaria da viagem no mesmo momento.
             Á medida que o carro de Lorena desaparecia no horizonte, o sorriso de Júlia se abria mais e mais.
            - Ih, Júlia... Esse sorriso aí está mais que suspeito. – disse Rita, pressentindo o que estava por vir.
            Para convencer Rita a levá-la ao acampamento, acobertar a “fuga” e assinar um termo do contrato, Júlia fez de tudo. Foi um processo de cinquenta minutos e que exigiu muita chantagem emocional, do tipo: “Você não pode negar para a sua sobrinha a única chance que ela tem de realizar seu sonho.”, ou mesmo: “Se eu não for, vou morrer de depressão!”.
            No final, Rita acabou cedendo, como já era de se esperar. Ela era muito maleável e sentia muita pena de Júlia, por ser criada por uma mãe tão pouco permissiva. Além disso, era uma adepta da filosofia de que “O que importa na vida é a intensidade com que é vivida”.
            Júlia mal podia acreditar. Havia sonhado tanto com aquele dia, e ele finalmente havia chegado.